quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O “caso Mateus”: fez-se Justiça?


O “caso Mateus”: fez-se Justiça?

É no ano de 2006, no fim da época desportiva 2005/2006, que estala a confusão no futebol português: o Gil Vicente é “condenado” duas vezes: a primeira, pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, com a descida da primeira divisão portuguesa para a segunda divisão, a segunda , pela Federação Portuguesa de Futebol, no impedimento da participação na Taça de Portugal da época subsequente, em seniores, e ao impedimento dos seus escalões jovens participarem em provas de cariz nacional (finando-se, portanto, pelos campeonatos distritais). Beneficiário desta decisão é o Belenenses que, despromovido no fim da época, consegue “salvar-se” pelo facto de o Gil Vivente, afinal, ser relegado para a Liga de Honra. É o famoso “caso Mateus”.

Sumariamente, o Gil Vicente viu recusada pela FPF a inscrição do seu jogador Mateus, por este ter, à altura, um contrato de trabalho com um clube amador. Inconformado, o Gil Vicente recorreu da decisão para os tribunais civis, pedindo a anulação do contrato em causa, acabando o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga por intimar a FPF a aceitar a inscrição. O Belenenses apresentou queixa à Liga de Futebol Profissional e à FPF, por considerar que o Gil Vicente tinha recorrido de uma situação “estritamente desportiva” para os tribunais comuns, o que era proibido pelos regulamentos destas. Após um processo controverso de decisão, o Gil Vicente foi mesmo condenado à despromoção com esse fundamento. Porém, o Gil Vicente recorre ao TAC Lisboa para impugnar esta última deliberação da FPF, o que leva a que esta seja novamente punido pelos órgãos máximos do futebol nacional.

Em 20 de Junho de 2012, o Supremo Tribunal Administrativo (http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/33ee56f3f188e89e80257a2f0051370c?OpenDocument&ExpandSection=1&Highlight=0,federa%C3%A7%C3%A3o,portuguesa,futebol#_Section1) veio a confirmar a decisão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 13 de Outubro de 2011 (http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/20b6403aadac0e9c8025792e00504c8a?OpenDocument&Highlight=0,competencia,futebol), que dava razão ao Gil Vicente, considerando que este podia ter recorrido aos tribunais administrativos para impugnar um acto administrativo da FPF, tendo decido bem o TAC Lisboa ao impugnar tal acto.

Em primeiro lugar, coloca-se a questão de saber se estava, de facto, em causa uma situação estritamente desportiva e, portanto, fora da competência dos tribunais administrativos, tanto no primeiro momento, em que o Gil Vicente recorre ao TAC Lisboa, como no segundo, em que recorre ao TCA para impugnar a “condenação” da FPF.

A isto nos responde o acórdão do TCA, de 13/10/11: “Em suma, uma questão é estritamente desportiva desde que a decisão em causa tenha por fundamento a aplicação de normas de natureza técnica ou disciplinar, respeitantes às “leis do jogo” (regras sobre o funcionamento da própria competição ou sobre a sua organização) e desde que tais normas não versem sobre direitos indisponíveis, não afectem direitos fundamentais, nem violem normas que protejam outro tipo de valores essenciais da vida em comunidade (v. g., corrupção).”
E ainda: “Deste modo, só as infracções disciplinares cometidas no decurso da competição, envolvendo questões de facto e de direito emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas provas, ou seja, as questões estritamente desportivas, estão sujeitas ao controlo privativo das instâncias competentes na ordem desportiva.
Tendo concluído que : “Não se verifica, assim, a invocada excepção de incompetência material dos tribunais (administrativos): os tribunais do Estado, designadamente os tribunais administrativos, detêm competência jurisdicional, com base nos arts. 20º, 212º-3 e 268º-4 da CRP, para apreciarem um pedido de anulação de decisão do Conselho de Justiça da FPF que determine a improcedência de recurso interposto de decisão proferida, condenando uma associada a uma época desportiva de suspensão quanto à participação na Taça de Portugal e nos Campeonatos Nacionais.”

Decidiu, bem, o TCA, pois para além de toda a sua argumentação, “salta à vista” do homem médio que uma decisão de impedir a inscrição de um jogador num campeonato por este ter um contrato de trabalho, que veio a ser anulado, não é uma questão “estritamente desportiva”, mas sim uma decisão que mexe, antes de mais, com o direito do trabalho e, em segundo lugar, com o direito administrativo. Ainda, quanto à sanção imposta pela FPF, trata-se de um claro acto administrativo, como afirma o TCA: “ a FPF é uma federação desportiva a quem foi concedido o estatuto de utilidade pública desportiva. Por isso mesmo, nos termos do art. 22.º da Lei n.º 30/2004, obteve, por delegação do Estado, a competência para o exercício, dentro do respectivo âmbito, de poderes regulamentares, disciplinares (que, normalmente, têm natureza administrativa) e outros de natureza pública.”, e, portanto, susceptível de impugnação contenciosa.

Descontente com esta decisão, a FPF recorre para o STA, com três fundamentos: (ainda) a incompetência dos tribunais administrativos, por se tratar de uma questão de natureza estritamente desportiva, falsidade da base factual essencial, e a nulidade da sentença por excesso de pronúncia.

O STA, bem, recusou a revista: quanto à falsidade da base factual, “a matéria de facto fixada não pode, por via de regra, ser reapreciada pelo tribunal de revista, o qual aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido (nºs 3 e 4 do art. 150º CPTA)”; Quanto à nulidade da sentença, “não assume manifestamente a importância fundamental reclamada pela norma, não justificando assim, por si só, a admissão da revista excepcional.”, referindo-se ao art.150º/1 CPTA; Por último, quanto à questão de se tratar, ou não, de uma questão de natureza estritamente desportiva, “estando nós perante matéria já tratada por este Supremo Tribunal, em diversas decisões reveladoras de uma posição jurisprudencial uniforme, na qual, aliás, se conforta o acórdão recorrido, não se vislumbra justificação para a admissão da presente revista, que sempre teria por objecto a reapreciação de uma questão já anteriormente analisada e decidida.”
Assim, o STA recusou a revista, por considerar não estarem verificados os pressupostos do art.150º/1 CPTA.

Cabe perguntar: fez-se justiça?

Bem, à primeira vista dir-se-ia que sim: os tribunais administrativos impugnaram as decisões da FPF e da LPFP, pelo que o Gil Vicente viu ser-lhe reconhecido o direito a, primeiro, poder inscrever o jogador Mateus e, segundo, a não ser condenado à descida de divisão, à suspensão da participação na Taça de Portugal e nos campeonatos nacionais, nas camadas jovens.

Contudo, na prática, o Gil Vicente sofreu as consequências das decisões da FPF e da LFPF. Convém não esquecer que está em causa um clube de futebol profissional, que depende, e muito, da participação em competições importantes, no mínimo, para a sua subsistência.
Ora, só na época passada, de 2011/2012, conseguiu o clube em causa disputar a primeira divisão portuguesa. Ou seja, esteve cinco épocas afastado da principal competição do futebol português. Para qualquer entendido na matéria, um tal espaço temporal no futebol hodierno é uma “eternidade”: muitos clubes atingem o estrelato, ou caem na perdição, em tão, aparentemente, curto espaço de tempo. Como se reflecte isto na associação em causa? Por certo que contratos de patrocínio, assistência aos jogos, capacidade de oferecer bons salários e de enfrentar o “mercado de transferências”, bem como qualquer imprevisto, saíram afectados. E agora? Agora, consta que o Gil Vicente vai propor uma acção contra a FPF, pedindo indemnização pelos danos emergentes e lucros cessantes causados pela sua actuação…

Bem, se um clube de futebol, com toda a sua projecção social e capacidade económico-financeira, pode ser afectado desta maneira por um acto administrativo, ficando seis anos (!) à espera do desfecho de um caso cujo objectivo foi apenas o de confirmar a sua “razão”, o seu direito a agir como agiu, pergunto: que garantias temos nós, na sua maior parte simples e desconhecidos particulares, contra um acto administrativo que nos pune por termos agido de forma correcta? Quantos anos teremos de esperar para sermos ressarcidos, se tivermos tal infortúnio?

Ficam as questões. E quanto ao caso em apreço: fez-se justiça? Sim, mas tarde e a más horas…

Condenação da Administração à prática de acto devido


A condenação à prática do acto devido, constitui uma forma de reacção dos particulares na medida em que não existe um acto expresso por parte da Administração, que conceda ou negue um Direito a determinado sujeito.
Esta acção, conforme dispõe o artigo 66º/2 CPTA tem como objecto a pretensão do interessado e não o acto de indeferimento em si. Daqui se lê que não existe um direito ao deferimento, mas a uma pronúncia efectiva por parte da Administração seja ela de deferimento ou de indeferimento.
 Da leitura conjugada do disposto no artigo 51º/4 com os artigos 66º/2 e 67º/1 al. b) do CPTA, os actos em causa têm de corresponder a actos estritamente vinculados da Administração, em que não exista discricionariedade que exija do tribunal o julgamento da causa de acordo com critérios de oportunidade e conveniência.
No âmbito dos seus poderes discricionários, a Administração pratica um acto de acordo com o preenchimento de critérios que considere serem os mais convenientes para o caso concreto. Deste modo, como se entende, uma apreciação casuística é adversa aos poderes do tribunal em sede de condenação à prática do acto devido, pois o que se afigure como um “ acto devido “ é concretizar juízos de conveniência e oportunidade.
Por conseguinte, este meio de reacção dos particulares só se afigura como adequado, quando estejam em causa actos administrativos cuja prática seja estritamente vinculada e que não determine na apreciação pelo tribunal da pretensão do particular uma avaliação de acordo com critérios de conveniência e oportunidade, característicos de discricionariedade.


Concepção de Acto Administrativo


O Acto Administrativo surgiu como uma forma de delimitar as acções da Administração excluídas da fiscalização dos Tribunais judiciais. 
Num primeiro momento, aparece como um “porto seguro” da Administração pela sua independência perante o poder judicial; tendo num segundo momento, passado a estar ao serviço do sistema de garantias dos particulares.
Tendo o acto administrativo nascido perante tais profundas conturbações ao longo da história, é discutido na doutrina qual o seu conteúdo. Os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e Paulo Otero consideram que o artigo 120º CPA reconduz-se à concepção ampla de acto administrativo; posição igualmente adoptada pelo Professor Marcello Caetano que entendia que este seria “uma conduta voluntária de um órgão da Administração que, no exercício de um poder público e para a prossecução de interesses postos por lei a seu cargo, produza efeitos jurídicos num caso concreto”. Para uma outra corrente doutrinária, nomeadamente o Professor Sérvulo Correia, o artigo 120º do CPA adopta uma concepção restrita de acto administrativo, a qual relega as manifestações jurídicas não impugnáveis como actos instrumentais. O Professor Mário Aroso de Almeida defende uma posição algo intermédia, considerando que se encontram reunidos na mesma categoria de acto administrativo, tanto os actos da relação administrativa geral, como aqueles cujos efeitos se esgotam no âmbito de relações intra-administrativas.
Para aferir da impugnabilidade do acto administrativo, o artigo 51º/1 do CPTA adopta como critério o da eficácia externa, assim são impugnáveis todos os actos administrativos que produzam ou constituam efeitos nas relações jurídicas administrativas externas. Partindo da conjugação destas normas o Professor Vieira de Andrade diz-nos que o conceito de acto administrativo impugnável é mais restrito do que o de acto administrativo previsto no CPA, uma vez que só abrange expressamente as decisões administrativas com eficácia externa desde que o seu conteúdo seja susceptível de lesar os direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares. Noutra medida também considera que existe um alargamento no conceito em relação ao âmbito material de acto administrativo uma vez que de acordo com o disposto no artigo 51º/2 CPTA, a nível orgânico inclui não só decisões tomadas por privados que exerçam poderes públicos, mas também actos emitidos por autoridades não integradas na Administração Pública. 
Para Vasco Pereira da Silva “impugnáveis são todos os actos administrativos que, em razão da sua “situação” sejam susceptíveis de provocar uma lesão ou de afectar imediatamente posições subjectivas de particulares”, por conseguinte o Professor dá preponderância ao critério da lesividade, admitindo mesmo que a noção processual de acto administrativo tem natureza de direito fundamental, por força do artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa, traduzindo-se numa faculdade de impugnar “quaisquer” actos administrativos que lesem direitos dos particulares.
Inclino-me a concordar com esta última posição. 



Providências Cautelares: Características e Espécies


1. Actualmente, abandonado o contencioso de mera anulação e concretizando o princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado no art.284.º/4 CRP, o art.112.º do CPTA, através da sua cláusula aberta (nº1), prevê a admissibilidade das providências cautelares em termos bastante amplos.
 Estes processos destinam-se a assegurar que, durante a acção declarativa já intentada ou a intentar, não se constitua uma situação irreversível ou se produzam danos que frustrem, no todo ou em parte, a utilidade da decisão a proferir no processo principal. Nesta medida, as providências cautelares não são autónomas face ao processo declarativo.
 As providências cautelares são processos especiais e urgentes uma vez que não se enquadram nem na acção administrativa comum, nem na acção administrativa especial e, segundo o art. 36.º\1, alínea e) e nº2, devem ser tratados prioritariamente.

  Para além disso, caracterizam-se ainda pela sua istrumentalidade, provisoriedade e sumariedade. São insturmentais na medida em que, para além de visarem assegurar a utilidade da sentença que vier a ser proferida na acção principal (art.112.º), dependem desta mesma causa principal (art.113.º). Esta dependência manifesta-se na caducidade da providência cautelar se a acção principal não vier a ser entreposta no prazo de três meses ou se estiver parada durante mais de três meses por culpa daquele que solicitou as providências cautelares. Finalmente, a sentença desfavorável ao requerente acarreta também a sua caducidade (art.123.º).
  Quanto à provisoriedade, esta manifesta-se quer na possibilidade das providências cautelares serem revogadas, alteradas ou substituídas (art.124.º) quer na sua caducidade se, no processo principal, o juiz da causa chegar a conclusões que sejam incompatíveis com a manutenção desta situação provisória. 
  Já a sumariedade determina que, atendendo a que não se pretende uma resolução definitiva do litígio mas somente garantir que a sentença produzirá o seu efeito útil, o tribunal deve proceder apenas a apreciações não aprofundadas, garantindo a efectividade da providência cautelar através do seu decretamento em tempo útil.

2. Tal como decorre da letra do ar.120.º/1, existem duas categorias de providências cautelares: as providências conservatórias e as providências antecipatórias. Para a sua distinção há que recorrer a um critério funcional. Assim, as providências conservatórias destinam-se a situações em que em que o interesse do requerente não depende de prestações de outrem, ou seja, o requerente pretende que não seja posta em causa a sua situação mediante condutas de outrem. As providências antecipatórias tutelam a satisfação do interesse do requerente mediante a obtenção da prestação necessária à satisfação desse mesmo interesse. No primeiro caso, estamos perante situações jurídicas finais, estáticas ou opositivas enquanto que no segundo estamos perante situações jurídicas instrumentais, dinâmicas ou pretensivas.


Autoria: Vasco Araújo Barjona Hernriques

Nº aluno: 19891

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012


ALTERAÇÃO LEGISLATIVA SEM REGIME TRANSITÓRIO VIOLA PRINCÍPIO DA TUTELA DA CONFIANÇA NO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR!



Intimação para proteção do direito de acesso ao ensino superior


Com a publicação do DL 42/2012, de 22 de Fevereiro, a meio do ano lectivo 2011/2012, que deu uma nova redação ao art. 11.º/6 do DL 74/2006, de 26 de Março, passou a ser obrigatória a realização de exames finais nacionais para os alunos que pretendessem prosseguir estudos no Ensino Superior. Assim, a meio do ano letivo de 2011/2012 passou a exigir-se aos alunos que se haviam inscrito no ensino recorrente a realização de exames finais cuja classificação seria atendida nos concursos de acesso ao ensino superior.

Esta questão foi já objecto de discussão nos tribunais administrativos, em ação intentada no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa de intimação de direitos, liberdades e garantias, onde se proferiu uma decisão que foi já objecto de recurso interposto para o TCA Sul por parte do Ministério da Educação, cuja sentença data de 6 de Dez. 2012[1].

Foi dada como provada a seguinte factualidade:
1.      O A., nascido em 11.4.1991, inscreveu-se, frequentou e concluiu no Externato Académico, em 8.7.2011 o Curso Secundário Recorrente – Socioeconómicas;
2.      Em 29.2.2012, o A. inscreveu-se para realizar o exame nacional de Português;
3.      Em 30.7.2012 foi emitida pela Universidade do Porto-Faculdade de Desporto, Ficha de Comprovação dos Pré-Requisitos 2012, válida para a candidatura ao ensino superior em 2012, em nome do ora A.;
4.      O A. obteve no exame nacional de português a classificação de 135 pontos;
5.      Em 22.2.2012 foi publicado no DR. […] o DL 42/2012 que alterou o sistema de apuramento da classificação final do ensino secundário dos cursos científico-humanísticos de ensino recorrente para efeitos de prosseguimento de estudos procedendo à quinta alteração do Decreto-lei 74/2004 que estabelece os princípios orientadores da organização e gestão curricular, bem como da avaliação de aprendizagem, no nível secundário de educação.
6.      Em 30.3.2012 foi publicada no DR. […] a Portaria nº 91/2012, que procedeu à segunda alteração à portaria nº 550-E, de 21 de Maio, que cria diversos cursos de ensino recorrente de nível secundário, aprova os respectivos planos de estudos e aprova o regime de organização administrativa e pedagógica e de avaliação aplicável aos cursos científico-humanísticos, aos cursos tecnológicos e aos cursos artísticos e especializados, nos domínios das partes visuais e dos audiovisuais, de ensino recorrente de nível secundário”.

A sentença recorrida decidiu dar provimento à pretensão do particular. Vejamos o que estava em discussão. Pretendia-se saber se, tendo em conta o exposto, estava em causa a lesão de um direito abrangido pela tutela do art. 109.º CPTA e art. 20.º/5 CRP.

As questões a que se pretende dar resposta são as seguintes:

1.      A intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias é o meio processual idóneo para resolver este caso?
2.      Foi violado o princípio da protecção da confiança tendo em conta o conteúdo do DL 42/2012?
3.      A lei nova é inconstitucional?

Começando pela primeira questão, há que averiguar se no caso estão preenchidos os requisitos do art. 109.º CPTA. Impõe-se, contudo, uma questão prévia: qual é o objecto da intimação? A determinação do seu objecto é de uma importância crucial, desde logo porque se confrontarmos a letra do art. 109.º CPTA com o a letra art. 20.º/5 CRP verificamos que não há uma correspondência total: no primeiro, diz-se “intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias”; no segundo, diz-se apenas “defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais”. É certo que a interpretação do art. 109.º CPTA tem de ser sempre conforme à Constituição. Tal não significa, porém, que se cinja à “consulta” do art. 20.º/5 CRP. Outras disposições constitucionais há que importa “consultar”, pelo que diga-se já de antemão que o âmbito de aplicação do art. 109.º CPTA não se cinge apenas aos direitos pessoais. Se assim não fosse estaríamos a ignorar o art. 17.º CRP, que ordena a aplicação do regime dos direitos, liberdades e garantias aos direitos fundamentais de natureza análoga. Assim, e como defende a esmagadora maioria da doutrina, o objecto da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias estende-se a todos os direitos, liberdades e garantias (previstos na Parte I, Título II da CRP) e aos direitos de natureza análoga. Bem entende CATARINA SANTOS BOTELHO ao afirmar que “se o legislador administrativo não distingue dentro daquela categoria, o intérprete-aplicador também não o deverá fazer”[2]. A presença do art. 17.º, diz-nos CARLA AMADO GOMES, “apenas confirma a diluição de fronteiras entre direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais, o que reforça a legitimidade da escolha legislativa […] - por haver direitos com uma dimensão pessoal no capítulo dos direitos económicos, sociais e culturais, análogos aos direitos, liberdades e garantias, que o julgador não pode, sem cometer nenhuma arbitrariedade excluir”. Por outras palavras, é a própria Constituição a aceitar que “no seu seio, podem existir (dimensões de) direitos não nominados como direitos, liberdades e garantias que beneficiam do regime destes (no que aqui importa, análogos aos direitos, liberdades e garantias pessoais)”[3]. Numa palavra: o art. 20.º/5 CRP mais não estabelece do que um imperativo constitucional mínimo.

Este caso insere-se ou não no objecto do art. 109.º? O recorrente diz, de forma vaga, que “não está em causa a lesão de um direito fundamental, pois a expectativa dos ora recorridos de ver considerada a classificação interna e/ou de serem dispensados da realização de exames finais não é um bem jurídico e, muito menos, dotado de dignidade constitucional”. Discordamos, tal como o TCA Sul. O que está aqui em causa é um direito social de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, especificamente o direito de acesso ao ensino superior – art. 17.º CRP [4].

            Uma vez no âmbito de aplicação do art. 109.º CPTA, vejamos agora os seus pressupostos. São eles: i) a urgência da decisão para evitar a lesão ou inutilização do direito, (sem a qual deverá haver lugar a uma acção administrativa normal, seja comum ou especial); ii) que o pedido se refira à imposição de uma conduta positiva ou negativa à Administração; e, iii) que não seja possível ou suficiente o decretamento provisório de uma providência cautelar[5].

O recorrente alega que não se verificam os pressupostos, uma vez que, sendo este um processo urgente, definitivo e excepcional, a admitir-se a protecção desse direito, “ela poderia ser alcançada através da tutela cautelar, que tem preferência legal sobre a tutela urgente e que compreende medidas antecipatórias, como a admissão provisória a concursos”. Ora, tal não é verdade, como diz o TCA Sul, uma vez que a situação de acesso ao concurso e a frequência do ensino superior a título provisório/precário é substancialmente diferente da sua frequência e conclusão a título definitivo, “designadamente no que concerne às subsequentes ofertas de trabalho e exercício de profissão. Aliás, essa frequência a título precário sempre se mostraria susceptível de causar danos insuportáveis no caso de improcedência do processo principal após vários anos de frequência de curso, ou mesmo após a sua conclusão pelo A., pelo que o princípio da tutela jurisdicional efectiva sempre aconselharia à admissão da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias.”

            Assim, o meio idóneo para este caso é, pois, o utilizado pelo A.

           Debrucemo-nos agora no princípio da tutela da confiança também invocado no processo pelo A. Este princípio decorre, deste logo, do princípio do Estado de Direito democrático – art. 2.º CRP – que postula uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas. Por isso, “a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária e demasiado opressiva aqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, terá de ser entendida como não consentida pela Constituição”. Foi precisamente isto que sucedeu e não pode acontecer! Foi precisamente isto que se fez no DL 42/2012 ao ter sido ignorada totalmente a criação de um regime transitório para os alunos que já tinham iniciado o seu percurso académico ao abrigo do regime anterior e que não tinham gerido o seu tempo na perspectiva da realização dos referidos exames. Nem sequer existe, tão pouco, qualquer interesse público que justifique a aplicação imediata da nova redacção introduzida por este novo DL.

            Nestes termos, ter-se-á de concluir, como bem o faz o tribunal, pela inconstitucionalidade do novo regime, recusando-se a sua aplicação, o que implicará a aplicação do regime anterior.






[2]CATARINA SANTOS BOTELHO, A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias – Quid novum?, in O Direito, 143.º (2011), I, 33-35.
[3] CARLA AMADO GOMES, Intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, Contra uma interpretação demasiado conforme à Constituição do art. 109.º n.º1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, in Rev. M.º P.º, nº 104 – Out/Dez 2005.
[4] De facto, a jurisprudência tem permitido o recurso a esta intimação para defesa de direitos sociais como o do acesso ao ensino superior (cfr. Acs. do STA de 13.7.2011 e o Ac. do TCAS de 23.11.2011).
[5] Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A justiça administrativa, 11ª edição, 2011, p. 240 – 242.

A sedimentação do Princípio da Igualdade de Armas entre os particulares e a Administração no Código do Procedimento Administrativo


Para justificar a afirmação que se fez no título deste escrito podem avançar-se, à cabeça, duas ideias-chave.

A primeira é a de que antes da vigência do actual CPTA a Admnistração estava isenta do pagamento de custas na generalidade dos processos passando agora a estar sujeita ao pagamento de custas, como estatui o artigo 189.º do CPTA.

A segunda é a de que com a vigência do actual CPTA, a Administração passa a poder ser condenada por litigância de má-fé, como estabelece o artigo 6.º do CPTA.

Um dos previsíveis efeitos que estas alterações poderão desencadear será a diminuição da litigiosidade por parte da Administração. Com efeito, se antes não havia qualquer incentivo que levasse a Administração a não recorrer de decisões (muito pelo contrário!) esta situação tenderá, parece-me a inverter-se.

Por um lado, mesmo quando a Administração não tinha objectivamente razão em relação ao pedido quando decidia recorrer, não pagava custas nem tão-pouco poderia ser acusada por litigância de má-fé.

Deste modo, a introdução no CPTA das alterações a que se fez referência poderão constituir factores relevantes na opção de recorrer ou não de decisões tomada pela Administração, o que levará -tudo leva a crer – a uma diminuição da litigiosidade, vindo, por outro lado aproximar a posição que no processo administrativo ocupam os particulares e a Administração.


Pedro Alvim

Micromegas, Freakonomics e prazos




Não há nada mais relativo do que a percepção que se tem da duração de um lapso temporal: tanto se pode nem dar pela sua passagem, como achar infindável cada instante que demore. As questões de prazos são, pois, sempre sensíveis.
No contencioso administrativo, prevê-se (58º CPTA) um prazo de 3 meses para impugnação de actos administrativos; contudo, o 58º/4 faculta o alargamento desse prazo até um ano. Embora muito estimada pelos advogados, um clássico da economia talvez ajude a perceber como esta disposição pode ter efeitos nefastos. No livro Freakonomics (Stephen D. Levitt/Stephen J. Dubner, 2005), dá-se conta de que, em Israel, havia um infantário em que os pais deveriam recolher as crianças até às quatro da tarde. Acontecia, porém, que muitas vezes os encarregados se atrasavam, deixando os infantes à espera. Um grupo de economistas propôs, como meio de pôr termo a tal situação, a introdução de uma multa equivalente a três dólares por cada atraso. Resultado: o número de atrasos aumentou substancialmente. Os pais, ao que parece, percepcionaram a nova política como um serviço que se poderia pagar – deixaram de sentir o incentivo moral para não chegar atrasados. Pior: quando a multa foi retirada, o número de atrasos não diminuiu, já que o “serviço” passara a ser gratuito, desaparecendo por completo o incentivo moral*. Na economia do 58º, qual o incentivo moral para respeitar o prazo de três meses?
Claro que isto só se aplica a actos anuláveis, já que a nulidade é invocável a todo o tempo. Ora, esta diferença de regime tem merecido críticas a alguma doutrina. Em concreto, o Prof. Vieira de Andrade tem-se pronunciado desfavoravelmente face ao regime “apocalíptico” que é dispensado à nulidade, pugnando pela intervenção dos princípios da boa fé e da tutela da confiança na “moderação” do regime legal dessa invalidade. Entre outras coisas, defende o Autor que a declaração de nulidade de actos favoráveis não deveria ser admitida a todo o tempo, mas apenas “num prazo razoável” (por imperativos de protecção da boa fé do particular e de estabilidade das situações jurídicas)**.
Numa simplificação, a ideia parece ser a de que, se na anulabilidade o regime, no que toca a prazos, é muito rígido, no domínio da nulidade ele é demasiado generoso. Temo, porém, que seja uma questão relativamente à qual nunca haverá consenso. Neste ponto, é um clássico da literatura que convoco em meu auxílio. No segundo capítulo do Micromegas, novela filosófica de Voltaire, é relatado um diálogo entre Micromegas, o nosso herói, habitante do planeta Sirius, figura de proporções gigantescas quando comparado com os seres humanos e dotado de longuíssima vida, e um habitante de Saturno, baixote e de vida fugaz quando comparado com aquele, mas igualmente gigante e de longa vida quando comparado com os meros terráqueos. A dado ponto, perguntam-se mutuamente quanto tempo vivem as respectivas espécies. Se o habitante de Saturno lamenta “tão pouco!”, Micromegas retorque: “é como nós! (…) não vivemos mais do que quinhentas grandes revoluções do Sol (o que vem a dar cerca de quinze mil anos). Bem vedes que é morrer quase ao mesmo tempo em que se nasce (…); estive em países onde se vivia mil vezes mais tempo que na minha terra, e vi que ainda resmungavam”.
Nada mais relativo do que a percepção que se tem da duração de um prazo: tanto se lhe pode apontar desmesurada extensão, como desabafar que “é morrer quase ao mesmo tempo em que se nasce”.


*Para uma apreciação pormenorizada do caso, veja-se http://www.nytimes.com/2005/05/15/books/chapters/0515-1st-levitt.html?_r=0 e, como primeira abordagem, o artigo “Ceteris Imparibus”, de João Duque (caderno de Economia do Expresso”, de 17 de Novembro de 2012)
**Cfr. J. C. Vieira de Andrade, “A nulidade administrativa, essa desconhecida”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, pp 763-791 (784)


Lourenço Santos