O
“caso Mateus”: fez-se Justiça?
É
no ano de 2006, no fim da época desportiva 2005/2006, que estala a confusão no
futebol português: o Gil Vicente é “condenado” duas vezes: a primeira, pela Liga
Portuguesa de Futebol Profissional, com a descida da primeira divisão
portuguesa para a segunda divisão, a segunda , pela Federação Portuguesa de
Futebol, no impedimento da participação na Taça de Portugal da época
subsequente, em seniores, e ao impedimento dos seus escalões jovens
participarem em provas de cariz nacional (finando-se, portanto, pelos campeonatos
distritais). Beneficiário desta decisão é o Belenenses que, despromovido no fim
da época, consegue “salvar-se” pelo facto de o Gil Vivente, afinal, ser relegado
para a Liga de Honra. É o famoso “caso Mateus”.
Sumariamente,
o Gil Vicente viu recusada pela FPF a inscrição do seu jogador Mateus, por este
ter, à altura, um contrato de trabalho com um clube amador. Inconformado, o Gil
Vicente recorreu da decisão para os tribunais civis, pedindo a anulação do
contrato em causa, acabando o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga por
intimar a FPF a aceitar a inscrição. O Belenenses apresentou queixa à Liga de
Futebol Profissional e à FPF, por considerar que o Gil Vicente tinha recorrido
de uma situação “estritamente desportiva” para os tribunais comuns, o que era
proibido pelos regulamentos destas. Após um processo controverso de decisão, o
Gil Vicente foi mesmo condenado à despromoção com esse fundamento. Porém, o Gil
Vicente recorre ao TAC Lisboa para impugnar esta última deliberação da FPF, o
que leva a que esta seja novamente punido pelos órgãos máximos do futebol
nacional.
Em
20 de Junho de 2012, o Supremo Tribunal Administrativo (http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/33ee56f3f188e89e80257a2f0051370c?OpenDocument&ExpandSection=1&Highlight=0,federa%C3%A7%C3%A3o,portuguesa,futebol#_Section1)
veio a confirmar a decisão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 13 de
Outubro de 2011 (http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/20b6403aadac0e9c8025792e00504c8a?OpenDocument&Highlight=0,competencia,futebol),
que dava razão ao Gil Vicente, considerando que este podia ter recorrido aos tribunais
administrativos para impugnar um acto administrativo da FPF, tendo decido bem o
TAC Lisboa ao impugnar tal acto.
Em
primeiro lugar, coloca-se a questão de saber se estava, de facto, em causa uma
situação estritamente desportiva e, portanto, fora da competência dos tribunais
administrativos, tanto no primeiro momento, em que o Gil Vicente recorre ao TAC
Lisboa, como no segundo, em que recorre ao TCA para impugnar a “condenação” da FPF.
A
isto nos responde o acórdão do TCA, de 13/10/11: “Em suma, uma questão é
estritamente desportiva desde que a decisão em causa
tenha por fundamento a aplicação de normas de natureza técnica ou disciplinar,
respeitantes às “leis do jogo” (regras sobre o funcionamento da própria
competição ou sobre a sua organização) e desde que tais normas não versem sobre
direitos indisponíveis, não afectem direitos fundamentais, nem violem normas
que protejam outro tipo de valores essenciais da vida em comunidade (v.
g., corrupção).”
E
ainda: “Deste modo, só as infracções disciplinares cometidas no decurso da
competição, envolvendo questões de facto e de direito emergentes da aplicação
das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas
provas, ou seja, as questões estritamente desportivas, estão sujeitas ao
controlo privativo das instâncias competentes na ordem desportiva.”
Tendo
concluído que : “Não se verifica, assim, a invocada excepção de incompetência
material dos tribunais (administrativos): os tribunais do Estado,
designadamente os tribunais administrativos, detêm competência jurisdicional,
com base nos arts. 20º, 212º-3 e 268º-4 da CRP, para apreciarem um pedido de
anulação de decisão do Conselho de Justiça da FPF que determine a improcedência
de recurso interposto de decisão proferida, condenando uma associada a uma
época desportiva de suspensão quanto à participação na Taça de Portugal e nos
Campeonatos Nacionais.”
Decidiu,
bem, o TCA, pois para além de toda a sua argumentação, “salta à vista” do homem
médio que uma decisão de impedir a inscrição de um jogador num campeonato por
este ter um contrato de trabalho, que veio a ser anulado, não é uma questão “estritamente
desportiva”, mas sim uma decisão que mexe, antes de mais, com o direito do
trabalho e, em segundo lugar, com o direito administrativo. Ainda, quanto à
sanção imposta pela FPF, trata-se de um claro acto administrativo, como afirma
o TCA: “ a FPF é uma federação desportiva a quem
foi concedido o estatuto de utilidade pública desportiva. Por isso mesmo, nos
termos do art. 22.º da Lei n.º 30/2004, obteve, por delegação do Estado, a
competência para o exercício, dentro do respectivo âmbito, de poderes
regulamentares, disciplinares (que, normalmente, têm natureza administrativa) e
outros de natureza pública.”, e, portanto, susceptível de impugnação
contenciosa.
Descontente
com esta decisão, a FPF recorre para o STA, com três fundamentos: (ainda) a incompetência
dos tribunais administrativos, por se tratar de uma questão de natureza
estritamente desportiva, falsidade da base factual essencial, e a nulidade da
sentença por excesso de pronúncia.
O
STA, bem, recusou a revista: quanto à falsidade da base factual, “a matéria de
facto fixada não pode, por via de regra, ser reapreciada pelo tribunal de
revista, o qual aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado
aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido (nºs 3 e 4 do art. 150º
CPTA)”; Quanto à nulidade da sentença, “não assume manifestamente a importância
fundamental reclamada pela norma, não justificando assim, por si só, a admissão
da revista excepcional.”, referindo-se ao art.150º/1 CPTA; Por último,
quanto à questão de se tratar, ou não, de uma questão de natureza estritamente
desportiva, “estando nós perante matéria já tratada por este Supremo Tribunal,
em diversas decisões reveladoras de uma posição jurisprudencial uniforme, na
qual, aliás, se conforta o acórdão recorrido, não se vislumbra justificação
para a admissão da presente revista, que sempre teria por objecto a
reapreciação de uma questão já anteriormente analisada e decidida.”
Assim,
o STA recusou a revista, por considerar não estarem verificados os pressupostos
do art.150º/1 CPTA.
Cabe
perguntar: fez-se justiça?
Bem,
à primeira vista dir-se-ia que sim: os tribunais administrativos impugnaram as
decisões da FPF e da LPFP, pelo que o Gil Vicente viu ser-lhe reconhecido o
direito a, primeiro, poder inscrever o jogador Mateus e, segundo, a não ser
condenado à descida de divisão, à suspensão da participação na Taça de Portugal
e nos campeonatos nacionais, nas camadas jovens.
Contudo,
na prática, o Gil Vicente sofreu as consequências das decisões da FPF e da LFPF.
Convém não esquecer que está em causa um clube de futebol profissional, que
depende, e muito, da participação em competições importantes, no mínimo, para a
sua subsistência.
Ora,
só na época passada, de 2011/2012, conseguiu o clube em causa disputar a
primeira divisão portuguesa. Ou seja, esteve cinco épocas afastado da principal
competição do futebol português. Para qualquer entendido na matéria, um tal
espaço temporal no futebol hodierno é uma “eternidade”: muitos clubes atingem o
estrelato, ou caem na perdição, em tão, aparentemente, curto espaço de tempo.
Como se reflecte isto na associação em causa? Por certo que contratos de
patrocínio, assistência aos jogos, capacidade de oferecer bons salários e de
enfrentar o “mercado de transferências”, bem como qualquer imprevisto, saíram
afectados. E agora? Agora, consta que o Gil Vicente vai propor uma acção contra
a FPF, pedindo indemnização pelos danos emergentes e lucros cessantes causados
pela sua actuação…
Bem,
se um clube de futebol, com toda a sua projecção social e capacidade
económico-financeira, pode ser afectado desta maneira por um acto
administrativo, ficando seis anos (!) à espera do desfecho de um caso cujo
objectivo foi apenas o de confirmar a sua “razão”, o seu direito a agir como
agiu, pergunto: que garantias temos nós, na sua maior parte simples e
desconhecidos particulares, contra um acto administrativo que nos pune por termos
agido de forma correcta? Quantos anos teremos de esperar para sermos
ressarcidos, se tivermos tal infortúnio?
Ficam
as questões. E quanto ao caso em apreço: fez-se justiça? Sim, mas tarde e a más
horas…